Um tempo atrás

Rafael Cadenas

Um tempo atrás, costumava me dividir em inúmeras pessoas. Fui sucessivamente — e sem que uma coisa atrapalhasse a outra — santo, viajante, equilibrista.

Para satisfazer aos outros e a mim mesmo, conservei uma imagem dupla. Estive aqui e em outros lugares. Criei espectros doentios.

A cada momento de repouso, assaltavam-me as imagens de minhas transformações, levando-me ao isolamento. A multiplicidade se lançava sobre mim. Eu a conjurarava.

Era o desfile dos habitantes desunidos, as sombras de região nenhuma.

No fim das contas, as coisas não eram bem o que havia imaginado.

Sobretudo, me faltou entre os fantasmas aquele que caminha sem que eu o veja.

Talvez o segredo da serenidade esteja aí, entre linhas, como um lampejo sem nome, e minha soberba injustificada dê lugar a uma grande paz, uma alegria sóbria, uma retidão imediata.

Até lá.


In Falsas maniobras (1966)
Trad. Lucas Reis Gonçalves